[Amálio Pinheiro (São Paulo)]
Trilce XXXIV: VOZ, SÍLABA E RITMO.
Se acabó el extraño, con quien, tarde
la noche, regresabas parla y parla.
Ya no habrá quien me aguarde,
dispuesto mi lugar, bueno lo malo.
Se acabó la calurosa tarde;
tu gran bahía y tu clamor; la charla
con tu madre acabada
que nos brindaba un té lleno de tarde.
Se acabó todo al fin: las vacaciones,
tu obediencia de pechos, tu manera
de pedirme que no me vaya fuera.
Y se acabó el diminutivo, para
mi mayoría en el dolor sin fin,
y nuestro haber nacido así sin causa.
O problema do conteúdo
Este soneto, espécie de primo-pobre enjeitado do livro Trilce, não pôde ser considerado, pela maior parte da crítica, como fazendo parte da chamada “evolução unitária” e “coerentemente dialética” da poética vallejiana, de Heraldos Negros a Poemas Humanos e España, aparta de mí este cáliz, na trajetória dominante em que as comoções individuais e afetivas e os enfrentamentos com a orfandade, a sociedade e com Deus se resolveriam maduramente no coroamento em cadeia, com algumas variações conceituais, neo-marxistas ou neo-hegelianas, nas figuras substancializadas do órfão, do índio, do operário e do miliciano; nem pôde nunca, este mesmo soneto, representar dignamente as revoluções trilceanas, sendo um poema reconstruído como rescaldo da época do primeiro livro, e concentrado em memórias múltiplas dispersas de atribulados percalços amorosos. No entanto, Vallejo o inseriu aí, com chispas e elos que se expandem por toda a obra.
O nó górdio parece estar na tendência, proveniente do pensamento centro-ocidentalizante, de rastrear nos textos do grande poeta andino uma interpretação de conteúdos, fundada na separabilidade entre significado e significante (de que deriva a importância maior e mais elevada concedida ao primeiro), entre o léxico e as vozes/oralidades/coloquialidades e entre, portanto, mente e corpo. Seria, nesse percurso unilinear, absolutamente necessário mostrar o crescimento progressivo de uma “ideia” e de um “significado”, cada vez mais “profundo” e “humano”, do nosso autor. Barthes já dissera: “A cultura francesa sempre privilegiou muito, ao que parece, as “ideias” ou, para falar de modo mais neutro, o conteúdo das mensagens. Ao francês importa o ‘algo a dizer’.” (“A face barroca”, em O Rumor da língua, Brasiliense, 1988, p. 244). A pressão interpretativa de se perseguir uma síntese totalizante no plano do significado corre sempre o risco de desprezar o corpo a corpo intersticial daqueles complexos componentes que constituem, no final das contas…, um poema: “…os gestos e os tons, os signos mímicos, acústicos e motores, que dão expressão e matiz significativo às palavras” (WELLERSCHOFF, “Literatura y práxis”, Guadarrama, 1975, p. 75). E também Susan Sontag, já em 1964, clamava: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte” (“Contra a interpretação”, L&PM, 1987, p. 23).
Não esqueçamos também, à época de Vallejo, do positivismo invasor das Repúblicas latino-americanas, ocupado numa educação e formação intelectual centrada nas classificações binárias: ordem e desordem, alto e baixo, o maior e o menor. As interações entre as partículas e corpúsculos da cultura, das linguagens e dos afetos cantantes e dançantes, que expandem os sentidos pelos ritmos, eram consideradas coisas de um povo mestiço e selvagem que não tinha o que fazer.
Enfim, estamos diante do dilema do “ser” (o que é que isso é ?; o que é que ele quer afinal dizer?), a saber: diante daquilo que o brasileiro Oswald de Andrade, parente xamânico de Vallejo, traduziu como “tupi or not tupi / that is the question”. E o mesmo César Vallejo disse-o de várias maneiras: “Lo que importa principalmente en un poema es el tono con que se dice una cosa y, secundariamente, lo que se dice.” (VALLEJO, Obras completas 4, El arte y la revolución, p. 79). Daí que o autor de Trilce exigisse, em vez da “vontade indigenista”, localista, mentalista e conteudista, uma “sensibilidade indígena” (VALLEJO, Variedades, núm. 1025, Lima, 22/10/1927), já impregnada animalmente em todos os atos grandes e pequenos. Num poema tal sensibilidade anímica deve dilatar-se encravada não só nos desdobramentos lexicais, macro-estéticos, mas numa extensão de sentidos possíveis nos planos micro-estéticos, em que se dão as mediações mínimas entre língua, corpo e ambiente.
Pequenos sons dançantes e seus arredores
Trata-se aqui de um soneto (do italiano sonetto, “pequena canção, ou literalmente, pequeno som”); mas um soneto enviesado, conduzido como filigrana sonora que busca ritmos de canto e dança. 11 versos decassílabos (hendecassílabos em castelhano) dialogam ricamente com 2 heptassílabos (octassílabos em castelhano) e mais 1 eneassílabo (decassílabo em castelhano), distribuídos certeiramente no terceiro verso da primeira estrofe e primeiro e terceiro versos da segunda estrofe. No Brasil, diríamos que poderia ser lido ou cantado como uma peça de samba-canção, ou talvez, sambolero.
Chama de cara nossa atenção a insistência, no começo de cada estrofe, do estribilho “Se acabó”: acupuntura oxítona que comanda o exercício da memória e da finitude de todas as coisas, apenas arrematada pela conjunção “Y” do último terceto, que ressalta a perda do fundamental “diminutivo” e inclui a situação pessoal e dos amantes dentro da fatalidade comunitária de todos os viventes: “y nuestro haber nacido así sin causa” (não há, diga-se de passagem, como deixar escapar essa orfandade universal já no anterior Trilce XXXIII, tenha-se nascido ou não: “o haga la cuenta de no haber aún nacido”). Contudo, esse “Se acabó” é uma espécie de rodopio de dança, escansão vocal e marcação rítmica do traçado prosódico do poema, que nos obriga a reler soletrando todo o quase-soneto, num incessante recomeço em continuum (é o que, inclusive, numa quase-paronomásia, a orquestração silábica da última palavra do último terceto nos propõe, forçosamente: Sin CAuSA / Se ACAbó).
Assim, a partir desta fragílima simetria assimétrica, as estrofes emolduram (“Se acabó el extraño”/ “Se acabó la calurosa tarde”/ “Se acabó todo al fin”/“Y se acabó el diminutivo”), em ziguezague, uma caudalosa e aglomerada listagem ampliada de um memorial das faltas e saudades, num crescendo cinemático como de câmera-na-mão, aquilo que um Severo Sarduy (“O barroco e o neobarroco”, em América Latina em sua literatura, Perspectiva, p. 165) chamou de “lista díspar” ou “enumeração disparatada”. (Este modo barroquizante de composição será desdobrado noutros moldes, exaustivamente, em Poemas Humanos e España, aparta de mí este cáliz; mas já está muito presente em Trilce.) Configura-se um caleidoscópio compacto da multiplicação metonímica do múltiplo, cujo material de ligadura e dobradiça é acentual, sonoro, vocal e prosódico. Mostram-se aqui os ritmos de afetos, acontecimentos, situações e paisagens que arrancam da fala ordinária adaptada às séries do verso, a partir do pormenor e do gesto chaplinesco intenso (o Chaplin de Luzes da Cidade, por exemplo) que se amotina por ser diminuto e dito insignificante. Intenso e extenso, sem qualquer dúvida, pela sua multiplicante aptidão molecular para incorporar e tornar tecidas alteridades plurais de séries distantes em movimento conjunto.
Os elementos de fala coloquial são incrustados numa composição que costura o simples no complexo e o fácil no difícil: da primeira à segunda estrofe se urde uma joalheria solar a partir da letra “a” e suas articulações em “ar”, “al”, “ab”, “ap”, “ad” etc., além de muitas outras bordadas e atravessadas enviesadamente, num incessante jogo de entre-espelhamentos e bumerangues. Alguns poucos apontamentos: insistência da palavra “tarde”, por três vezes, em fim de verso; insistência em cavalgamentos (enjambements); a maioria dos hemistíquios são acentuados no calorífero fonema em “a”. O primeiro verso da segunda estrofe, que assinala a presença da lembrança da natureza/cultura nos corpos amantes (“tu gran bahía”), é um apoteótico rendilhado de dança e cor silábicos sob o regime do sol: “Se acabó la calurosa tarde;”. Uma, entre outras, possível variante gráfico-vocal: Se ACAbó LA CALuRoSA tARde. Ressoa aqui o quase-manifesto estético-solar de T. I: “Un poco más de consideración, / y el mantillo líquido, seis de la tarde / DE LOS MÁS SOBERBIOS BEMOLES”.
Sílaba: por uma política da alegria
Ressalta aqui um fenômeno grato e marcante na produção das culturas poético-musicais do continente, que César Vallejo leva a grandes desdobramentos: a enumeração compactada e ampliada, marchetada de dobras-e-curvas em cor/som/voz, que coloca em cena, nas formas em movimento de alta voltagem fonética, a alegria solar dos gestos gráfico-sonoros. A linha de tristeza e dor dos significados é invadida pela alegria erótica do baile, o que aumenta em muito a complexidade da composição. A espessura da composição se adensa com a recarga das formas em movimento da alegria recompondo o âmbito da tristeza. Parece que vemos aqui o cholo Vallejo dançando feliz em seu bairro. (Não se pode deixar de ler, a respeito, “Trilce: húmeros para bailar”, de Pedro Granados, VASINFIN, 2014.) Isto porque as sílabas, no caso, montam uma linguagem aglutinante que rompe o caráter flexional e linear da língua, mesmo quando, como neste Trilce XXXIV, Vallejo não destripa as palavras ou incrusta-as em implosões sintáticas e ortográficas de toda ordem. O ritmo coloquial encadeado nas nervuras dos códigos nativos é suficiente para abalar as ontologias importadas.
A paixão dos ritmos silábicos está distribuída por toda a obra e vida do poeta. Vai aqui um parco exemplo, tirado do conto Liberación de Escalas Melografiadas: “Suenan esas notas, y desusada sugestión ejercen ahora en mi espíritu, hasta el punto de casi sentir la letra misma de la canción, engarzada sílaba por sílaba, o como clavada com gigantescos clavos en cada uno de los sonidos errantes. (…) Las notas se cruzan, se iteran, patalean, chirrían, vuelven a iterarse, destrozan tímidos biseles”. (VALLEJO, Obras Completas 2, Laia, Barcelona, 1980, p. 43-4). A condição estética, ética e política, combinadas, se concentram, por assim dizer, na biosemiosfera das sílabas, que aglomeram os pequenos gestos vitais, sentimentais e vocais, em todas as menores, invisíveis e imprevisíveis atitudes diárias. Isto já era praticado por Vallejo em Trilce, cinco anos antes de escrever em “Ejecutoria del arte socialista” (Variedades, núm. 1.075, Lima, 6/10/1928): “Porque la estética socialista no debe reducirse a los temas, al sentido político ni a los recursos metafóricos del poema. No se reduce a introducir palabras a la moda sobre economía, dialéctica o derecho marxista. (…) La estética socialista debe arrancar únicamente de una sensibilidad honda y tácitamente socialista”.
Alguma tradução
Agora nos dispomos a enfrentar um belo problema frente ao que podemos chamar uma teoria oculta da tradução em César Vallejo. Diz o poeta: “Lo que se dice es, en efecto, susceptible de pasar a otro idioma, pero el tono con que eso se dice, no. El tono queda inamovible en las palavras del idioma original en que fue concebido y creado. (…) Los mejores poetas son, en consecuencia, menos propicios a la traducción” (“Electrones de la obra de arte”, em El arte y la revolución, Obras Completas 4, Laia, Barcelona, p. 79). Para nós, por meio de uma esquiva negativa, Vallejo está querendo dizer que, liberada a poesia da couraça lexical, a tradução parte da sua aparente impossibilidade colada ao ritmo e tonalidade dos versos, para, através das aproximações do jogo sempre incompleto de compossíveis do impossível, fazer alastrar-se de língua a língua a escavação do palimpsesto traduzível, agora posto à decifração noutro espaço-tempo. Os melhores poetas são, em consequência, dentro de uma heurística falível, os únicos propícios à tradução.
TRILCE XXXIV
Acabou-se esse estranho, com quem, tarde
da noite, regressavas parla e parla.
Já não há mais quem me aguarde,
disposto meu lugar, boa a maldade.
Acabou-se a calorosa tarde;
tua grande baía e teu clamor; a charla
com a tua mãe acabada
que nos brindava um chá cheio de tarde.
Acabou-se enfim tudo: essas férias,
tua obediência de peitos, tua maneira
de me pedir que não me vá embora.
E acabou-se o diminutivo, para
minha maioridade em dor sem fim
e nosso haver nascido assim sem causa.